Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro: Conceito, Aplicação e Controvérsias

A teoria da cegueira deliberada (willful blindness) é um conceito importado do direito anglo-saxão, amplamente aplicado no Direito Penal Econômico. Seu objetivo é responsabilizar penalmente aqueles que, de forma consciente e voluntária, evitam saber da ilicitude de determinados atos para escapar da responsabilidade criminal. No Brasil, a aplicação dessa teoria ainda é limitada e controversa, pois pode colidir com princípios fundamentais do Direito Penal, como o princípio da legalidade e a vedação à responsabilidade penal objetiva. Este artigo explora a origem da cegueira deliberada, sua aplicação no direito penal brasileiro e os principais desafios na sua utilização pela doutrina e jurisprudência.

Matheus Oliveira

3/26/20254 min read

     A teoria da cegueira deliberada originou-se Direito anglo-saxão (Direito Inglês, common law), e atualmente é aplicada no Direito Penal Econômico. A teoria tem como funameno considerar culpável o agente que, de forma voluntária, evita tomar conhecimento de fatos que indicam a ilicitude dos bens.

    A teoria da cegueira deliberada, amplamente debatida no Direito Penal, resulta de uma importação doutrinária e jurisprudencial, tendo aplicação reconhecida de forma limitada pelas cortes brasileiras.

    Trata-se de um mecanismo que visa imputar responsabilidade penal em situações nas quais o agente, de maneira consciente, cria obstáculos ao seu próprio conhecimento sobre a origem ilícita de determinados atos ou bens, utilizando essa omissão como defesa contra a imputação criminal.

     Conforme explica o autor Jucelino Oliveira Soares, atribuem esse ato ao do animal avestruz, pois, segundo o imaginário popular, de enfiar a cabeça na terra sempre que perceber qualquer situação de risco ou anormalidade, com o objetivo de esconder-se e ignorar as circunstâncias a sua volta, na esperança de que estas não o afetem.

    No ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilização penal objetiva é vedada, assim como presunções automáticas de conhecimento ou de capacidade de evitar o crime em virtude de uma posição específica em estruturas empresariais.

     Contudo, a teoria da cegueira deliberada estabelece que, na ausência de dolo direto, é possível a condenação por dolo eventual, desde que preenchidos certos requisitos. Esses incluem a comprovação de que o agente, de forma consciente e voluntária, tomou medidas para evitar saber sobre a ilicitude dos fatos, mesmo quando tinha plena capacidade de investigar sua origem ilícita.

     Assim, para evitar a aplicação indevida da teoria, que poderia resultar em responsabilização penal objetiva, é imprescindível que o dolo seja demonstrado por provas objetivas. Isso significa que a conexão psicológica do agente com os atos criminosos deve ser provada de maneira clara, considerando-se as circunstâncias específicas do caso concreto.

     Essa análise cuidadosa visa garantir que a aplicação da teoria respeite os princípios fundamentais do Direito Penal brasileiro, preservando os limites entre dolo eventual e simples negligência.

     Partindo-se dessa premissa, a fim de que não reste configurada vedada responsabilidade penal objetiva, a comprovação do dolo (elemento subjetivo do tipo) deve ser feita por meios de prova objetivos, de maneira a demonstrar uma relação psicológica do sujeito com os fatos delitivos, com base nas circunstâncias de cada caso concreto. Discorrendo sobre o tema, leciona Renato Brasileiro de Lima que:

"é perfeitamente possível a imputação do delito de lavagem tanto a título de dolo direto, quanto a título de dolo eventual. Portanto, o delito de lavagem restará configurado quer quando o agente tiver conhecimento de que os valores objeto de lavagem são provenientes de infração penal (dolo direito), quer quando, ainda que desprovido de conhecimento pleno da origem ilícita dos valores envolvidos, ao menos tenha ciência da probabilidade desse fato - suspeita da origem infracional -, agindo de forma indiferente à ocorrência do resultado delitivo (dolo eventual)." (in: "Legislação Criminal Especial Comentada", Salvador: Ed. JusPODIVM, 6ª ed., Salvador, pág. 590).

     Na jurisprudência, o STJ aplica essa teoria ao exigir que a omissão deliberada seja comprovada, como no julgamento do AgRg no REsp 1793377/PR, em que se concluiu que a conduta do agente deve evidenciar intenção de ignorar a ilicitude para auferir vantagem​.Esse entendimento é essencial para lidar com práticas sofisticadas de ocultação de bens

     O ordenamento jurídico brasileiro impede a responsabilização penal objetiva ou por presunção de conhecimento de fatos e da possibilidade de impedi-los pela ocupação de posição específica em estrutura empresarial.

     A jurisprudência brasileira tem, em algumas ocasiões, mencionado a teoria da cegueira deliberada, especialmente em casos envolvendo crimes financeiros e corrupção. No entanto, a aplicação prática ainda é incipiente e carece de uniformidade. Stella Aguiar Barbosa e Luiza Silveira da Silva, no artigo "A teoria da cegueira deliberada no direito brasileiro", ressaltam que a falta de critérios objetivos para a aplicação da teoria pode levar a decisões arbitrárias, enfatizando a necessidade de um debate aprofundado sobre sua utilização .​ Há críticas quanto à sua aplicação, pois pode conflitar com o princípio da legalidade e gerar insegurança jurídica.

     Sem preservação da coerência sistêmica do sistema penal brasileiro, não há como admitir a aplicação de doutrina alienígena


Referências

  • SOARES, Jucelino Oliveira. A teoria da cegueira deliberada e sua aplicabilidade aos crimes financeiros. Revista Acadêmica Escola Superior do Ministério Público do Ceará, 2019.

  • LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: JusPODIVM, 6ª ed., 2022.

  • Superior Tribunal de Justiça – AgRg no REsp 1.793.377/PR (Relator: Min. Jesuíno Rissato, 2022).

  • BARBOSA, Stella Aguiar; SILVEIRA DA SILVA, Luiza. A teoria da cegueira deliberada no direito brasileiro.

Aplicação da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro

A importação da teoria para o Brasil tem gerado debates. Segundo Renato Brasileiro de Lima, a cegueira deliberada pode levar à condenação por dolo eventual, desde que preenchidos certos requisitos:

✅ O agente tinha plena capacidade de investigar a origem ilícita do ato.
✅ Ele evitou conscientemente tomar conhecimento da ilicitude.
✅ A omissão foi deliberada e visava escapar da responsabilidade.

Entretanto, a vedação à responsabilidade penal objetiva impede que se presuma automaticamente o conhecimento do crime apenas pela posição hierárquica do agente em uma estrutura empresarial.

Exemplo prático

Imagine um empresário que recebe um grande volume de dinheiro de uma fonte suspeita e decide não investigar a origem dos valores. Caso fique comprovado que ele deliberadamente evitou saber da ilicitude, poderá ser enquadrado na teoria da cegueira deliberada e condenado.

Controvérsias e Críticas à Cegueira Deliberada no Brasil

A aplicação da teoria da cegueira deliberada não é pacífica no Brasil. Algumas das principais críticas incluem:

🔴 Risco de violação ao princípio da legalidade – A teoria não está expressamente prevista no Código Penal, podendo gerar insegurança jurídica.
🔴 Possível uso indevido pelo Ministério Público – Sem critérios claros, a acusação pode utilizar a teoria de forma genérica, forçando condenações.
🔴 Confusão entre dolo eventual e culpa consciente – Se mal aplicada, a teoria pode levar à responsabilização excessiva de agentes que apenas foram negligentes.

Segundo Stella Aguiar Barbosa e Luiza Silveira da Silva, a falta de critérios objetivos pode tornar a teoria um instrumento de abuso no processo penal, gerando condenações sem provas suficientes de dolo.